16 Apr 2014

‘Heart and soul’: Peter Hook, de alma e coração em Lisboa


Cerca de um ano depois de ter estado em Portugal, Peter Hook regressa ao país que sabe acolhê-lo bem. O motivo é nobre e apelativo: acompanhado da banda The Light, tocará três vezes álbuns de Joy Division que ficaram para a história, marcaram gerações e continuam a estar entre os mais ouvidos e aclamados pelos entendidos. O mote está lançado; a expectativa é grande quando, com várias semanas de espera em cima, vamos finalmente ao Armazém F, Lisboa, a 12 de Abril para o reencontro com Hooky, o baixista das linhas icónicas sem as quais o som de Joy Division não seria o mesmo; o músico que continuou a subir aos palcos com New Order;  o embaixador dos primórdios do pós-punk e da synthpop.

Um currículo que não lhe pesa em cima e é assim mesmo, sem presunções, que Peter Hook faz a primeira parte do seu próprio concerto. Serão sete as músicas da apresentação inicial. Mas o público dispensa apresentações e reage logo ao primeiro som, depois da entrada simples de Hook and The Light no palco do antigo TMN Ao Vivo (que perdeu um bocadinho do carisma na retroversão para Armazém F). ‘Your Silent Face’ abre o alinhamento e melodia faz-nos entrar imediatamente no “mood” de regresso ao passado. Mesmo aqueles que (como eu) só há poucos anos conheceram os nomes de Hook e Curtis (e Bernard Sumner e Stephen Morris). Os quatro criaram, em 1976, a tímida banda Warsaw, que viria a dar origem a um dos maiores mitos/lendas da nossa música: os Joy Division.


É esse mito/lenda que leva jovens com pouco mais de 20 anos e marcarem presença nas primeiras filas para Peter Hook. Jovens de cabelos curtos, uns azuis, outros avermelhados, que sentem aquelas músicas de olhos fechados e emoção no rosto como se lhes estivessem a ser dadas a ouvir em primeira mão. À geração “o Ian Curtis é uma lenda”, como se ouve pouco antes de o concerto começar... Na verdade, este alinhamento provocou o mesmo entusiasmo nos jovens de há vinte anos, que ocupam agora as últimas filas da sala. A mesma emoção estampada no rosto, o mesmo transe. Um encontro de gerações a viver com intensidade partilhada um concerto que poderia bem roçar a decadência em que caem frequentemente os reencontros de bandas únicas ou os revivalismos da eterna vivência no passado glorioso. 

Parece que é mesmo isso que vai acontecer quando Peter Hook sobe ao palco com uma tshirt do Top Gun demasiado justa nas zonas onde a idade não perdoa. Mas enganamo-nos e reajustamos expectativas logo quando ‘Senses’ se faz ouvir. Entramos no universo do salão de jogos para que nos atiram sempre os New Order. ‘ICB’ confirma a analogia, mas ‘Age of Consent’ faz-nos mudar logo de cenário. O público trauteia os acordes iniciais. Repetitivos, cativantes, inevitáveis. A bateria a estalar, as cordas a rasgar e a voz lá ao fundo, pequenina como é a de Hook, a desaparecer por trás dos ecos do público transportam-nos para uma qualquer cave do Reino Unido. Talvez o Music Box, em Manchester... (Ah, o encanto dos espaços pequenos.) 

Peter Hook vai piscando o olho ao público, que lhe devolve de imediato o "flirt". Chama-lhe “Hooky” antes de ‘Leave Me Alone’, propõe-lhe casamento enquanto não chega ‘Ceremony’. O baixista há-de retribuir lá para a frente, tocando quase em cima da plateia (sem vaidades ou pose de estrela), distribuindo água e cigarros. O aquecimento não poderia terminar sem ‘Blue Monday’ e os espectadores sabem disso. É a melhor forma de começar a segunda parte, depois de um intervalo em que reparamos na quantidade de tshirts de Unknown Pleasures ali presentes. (Apenas uma dissidente ousa provocar com o não menos icónico símbolo dos Ramones. Esta coisa das bandas que vendem mais tshirts que discos...) O cenário não deixa margem para dúvidas: a capa daquele álbum e a de Closer são panos de fundo do palco.




‘Atrocity Exhibition’ faz-se ouvir no regresso ao palco para, agora sim, dedicar o alinhamento à discografia de Joy Division. Numa inversão cronológica toca-se primeiro Closer (1980) e só depois Unknown Pleasures (1979). 

‘Isolation’ recupera a energia que tinha caído ligeiramente e é incrível como o público se entrega à celebração. O ritmo a que as músicas se sucedem vai manter-se acelerado durante todo o concerto (que, mesmo assim, acaba por durar três horas, com várias pausas pelo meio, é certo, mas mesmo assim impressionante). Logo depois de ‘A Means To An End’, que merece destaque pela beleza do momento a que deu origem, arranca ‘Heart and Soul’. É aqui que se confirmam as certezas: esta noite é para celebrar o imaginário Joy Division e Peter Hook está comprometido com essa missão de alma e coração. Perdoem o trocadilho, mas descreve bem a noite, em palco e do outro lado. Os poucos resistentes descolam do chão e há até quem tente copiar os movimentos marcantes do inimitável Ian Curtis. E que pena que o próprio Hook tenha apanhado alguns dos maneirismos do vocalista – por força da convivência ou em prol da preservação da memória colectiva (e do “showbiz”). Lá se redime sempre que vira a página do livro de cábulas das letras das canções. 

‘Decades’ anuncia mais uma pausa e o "frontman" deste espectáculo deixa os The Light a tomarem conta do instrumental da última faixa de Closer. Pouco depois retoma-se o ritmo com ‘Digital’, num tom mais acelerado que vai marcar a terceira parte da noite. E aqui vai tocar-se não só Unknown Pleasures como também outras edições da banda de Manchester. O público acompanha: “day in, day out, day in, day out...”. Estamos de volta ao ambiente "underground". 

Vai ouvir-se logo a seguir “I've got the spirit, but lose the feeling, feeling, feeling…” de ‘Disorder’. E o público pergunta, já em ‘Day of the Lords’, “where will it end? Where will it end?”. Refrões catárticos que fazem parte das estórias de todos nós. ‘New Dawn Fades’ cria um impressionante momento de boa música, mas a partir de agora já só queremos ouvir “aquela”. E então surgem ‘She’s Lost Control’‘Shadowplay’. Na primeira identifica-se alguma resistência do público, a contrastar com a própria mensagem da música, mas na segunda logo desaparece o descontrolo civilizado da audiência. 


‘Interzone’ e ‘I Remember Nothing’ abrem caminho para nova paragem e a recta final. Mas desengane-se quem espera um encore rápido e simples. (Re)Começamos com a muito aguardada ‘Atmosphere’ e, continuando um ritmo mais calmo, ‘Dead Souls’. Porém, chega logo ‘Warsaw’ para surpreender e atirar a sala para a euforia de ‘Transmission’. Os saltos são inevitáveis. A imaginação faz ver Ian Curtis a dançar no palco enquanto o público interioriza “dance, dance, dance to the radio"

Como o próprio Peter Hook explica, a noite não podia acabar de outra forma que não fosse com ‘Love Will Tear Us Apart’. E apesar de dedicar a música às senhoras, não são apenas as vozes femininas que acompanham a letra. Não há momentos lamechas a fechar o concerto, nem poderia haver já que o público começa logo a entoar os acordes da última música em tom de festa. (Exactamente como se faz cada vez que toca ‘Seven Nation Army’ dos White Stripes.)

O concerto termina alguns minutos e muitos aplausos depois. Não fica a faltar nada. A alma e o coração estão satisfeitos.